Uma Pedra No Caminho.
Nasci em casa no dia 19 de Abril de 1969 na Rua Luis Buratti, 388 em Caxias do Sul. Fui batizado como Jurandir Sebastião Ribeiro da Silva e hoje sou o Jura.
Passando o Posto do Capeletti na primeira à direita nos trilhos lá no bairro Rio Branco, onde hoje passa a Perimetral, tinha um túnel para a passagem da água no qual costumávamos andar dentro. Do outro lado, cruzando o mato, existia um açude que era próximo a uma pedreira. Alguns amigos meus morreram lá, ao saltar do alto das pedras para um mergulho. Havíamos apelidado aquele local de Ericsson. Era um código secreto entre nós, para os nossos pais não saberem onde iriamos. E atrás do açude morava o Seu Zunho, que várias vezes atirava com sua espingarda carregada de sal grosso contra nós. Foram anos de brincadeiras, jogar bola, bulita, esconderijos no mato, correr atras de lagartos, passarinhos, fazer fogueira e estar junto dos amiguinhos.
O Jurandir estudou no Nossa Senhora de Fátima, atual Escola Cenecista Santo Antônio, ao lado da Gráfica São Miguel. Ele foi batizado na igreja dos Capuchinhos pelo Frei Damião,conta a sua madrinha.
Com 14 anos comecei com a maconha. Tenho o primeiro grau completo e nunca rodei. Uma vez minha mãe me disse: “Meu fio, se tu quer estudar teu pai vai pagar até o fim. Mas se tu não estudar, vai ter que trabalhar e teu pai me disse que ele não quer vagabundo em casa.” A tia-madrinha Salete arrumou um emprego de Auxiliar de Marceneiro no Menegola Móveis. Ela ainda lembra que com muito orgulho quando eu contei pra ela das primeiras cadeiras e mesas fabricadas pormim junto na marcenaria, para serem entregues lá no Bar e Lancheria Arca, no centro da cidade,perto do Juvenil.
Nessa época eu era Auxiliar de Marceneiro, mas já sabia que eu era melhor que os outros. Aí eu fiz um curso de leitura e interpretaçao de desenho mecânico, de oitenta horas, no ITC (Instituto Tecnico Caxias). Trabalhava de dia e à noite fazia o curso. Foi então que cheguei para o Menegola e disse: “não quero mais trabalhar de auxiliar, eu já tenho o curso e gosto de trabalhar com a madeira”. Ele, então, me deu dois balcões de banheiro, um reto e um sextavado. Demorei 32 dias para fazer sozinho. Naquela época era só lápis de pedreiro e papel. Com o metro de madeira dobrável tirei as medidas e a proporção foi toda de cabeça. O tamanho das gavetas, o suporte para a pia, as portas, fiz tudo sozinho. Quando terminei o chefe olhou e disse: “Sinceramente, estão muito bem feitos. De hoje em diante, dezembro de 85, tu não é mais auxiliar, tu agora é marceneiro.” – Foram as palavras de Adelar Menegola.
Um dia de chuva, meio escuro, estacionou na frente da marcenaria um cara moreno, franzino, carrancudo e mal encarado dentro de um Escort GL. Ele entrou, conversou com o Seu Adelar por umas duas horas, quando foi embora, a pé, deixou o Escort e saiu de lá com 33% da sociedade da marcenaria. A partir daí, Jacaré, que era seu apelido, levantou a Menegola móveis que em 6 meses se mudou para a Av. Vêneto, hoje Av. Rubem Bento Alves.
Eu fumava minha maconha, tinha meu trabalho, era respeitado, tinha sempre dinheiro no bolso, namoradas, gostava de ir às Lojas Bula,no Magnabosco,Armarinhos Caxias, comprar uma roupa boa. Não gostava de calça jeans. Gostava de calça, camisa e sapato. Marca nunca me interessou. Gostava de roupa nova e limpa. Até que um dia o Jacaré disse que não admitia a minha volta do almoço chapado. E foi nessa mesma tarde que eu peitei ele e disse: “o pau no cú, estou com o Menegola há dois anos e se for assim me manda embora!”. Terminei o trabalho que já havia iniciado, que era a fabricaçao de todas as estantes em Louro Freijó, para colocar as taças e troféus, de um clube lá em Forqueta.
O sonho do Jurandir era o exército, mas por indiferença e descaso do destino ele não conseguiu. Relata seu irmao Daniel.
Cheguei para me alistar. Consegui que me aceitassem sem o dedão da mão direita. Hoje eu seria um Capitão. Se eu tivesse estudado, com a minha inteligência,e com os meus 17 anos em 1988.
Foi lá nos móveis Scalabrin que eu perdi o dedão na serra circular cortando madeira maciça. Sempre fui corajoso. Até quatro cm próximos de uma serra eu passo com a mão mesmo. O corte pode passar esbarrando. E não gosto de usar pauzinho e nem nada para me ajudar. Cheguei no dia da inspeção e o tenente disse: “Quem tiver alguma deficiência física passa para o lado.” Fiquei na minha fila, então ele ordenou que tirássemos as roupas e ficássemos nus em pelo. Ele disse para todos esticarem os braços e abrir as mãos. O Tenente chegou em mim e gritou: “Tu acha que queremos gente podre, bichada dentro do exército? Vai botar tua roupa! E saia logo daqui antes que eu te chute o cú!”.
Mas o ponto mais alto da minha vida foi quando eu tinha os meus pais. Não preciso de dinheiro nenhum, nem de riqueza, nem de nada. Tem algumas coisas que estão lá no fundo, fechadas a sete chaves, como num baú, que eu sei que não gostamos de falar. Tomo minha cachaça, e quero dar a volta por cima. Sou forte para muitas coisas, mas fraco para outras.
De uns 11 anos pra cá, quando eu me aprofundei demais na droga,o meu pai morreu não me perdoando. E a minha mãe, essa sim, uma vez , quando eu estava no desespero, até dinheiro para droga ela me deu, e me disse que não queria me ver naquele estado de desespero. Meu pai morreu em 23 de Fevereiro de 2010, de falência múltipla dos órgãos e cirrose por causa da bebida. Em oito de Março de 2012, dia da mulher, morreu a minha mãe. Eu não fui nem no enterro e nem no velório porque eu não queria acreditar que ela tinha morrido. E é só de uns dias para cá que estou acreditando.
Nós somos todos nacional, Ribeiro da Silva, minha mãe veio da encosta do Rio das Antas. Meu pai é natural daqui de Caxias mesmo. Teve uma época que DKW, Rural e Lambretta eram carro do ano. Eu nunca usei na vida um Ki-Chute ou Bamba e nós éramos classe média. Hoje não existe mais classe. Ou é pobre ou é rico.
Eu só penso em umas coisas que me arrependo. E eu sei que Deus tem uma coisa muito forte aqui na terra e jamais vai existir um ser humano 100%. Nem Bill Gates, nem ninguém. E eu agradeço a Deus por me dar uma nova oportunidade. Minha própria burrice e fraqueza me trouxeram até o fundo do poço. Mas eu não tava enterrado no lodo, que do lodo ninguém sai. Do fundo do poço, sim.
O Daniel, irmão do Jura, foi o ultimo a ir embora e nem as fotos levou. Ele é nascido em 06 de Fevereiro de 1972. O Juarez, outro irmão que mora há poucas quadras, é de 20 de Novembro de 1965.
Atualmente moro sozinho, com os três cachorros, o Kimi (nome do piloto de formula um), o Ozzi (nome do cantor) e a Juli (de July Andrews). Aqui na garagem do falecido pai tenho esta serra circular, uma bancada, umas ferramentas, uma parafusadora elétrica que consigo fazer algum serviço.
A casa onde o Jura vive, sabemos que esta irregular, invadida,quando o pai e mãe eram vivos,eles pagavam o IPTU, água e luz, mas já faz algum tempo ,o Jura fez gato na luz e até o SAMAE veio ai cortar a água dele,comenta a vizinha Dona Solange,que conhece a familia do Jura faz mais de vinte anos.
Pequei quatro cadeia. A primeira, Maria da Penha, foi porque taquei fogo na casa da negona, uma amante que eu arrumei ali na Boate Hollywood,bem pertinho do Clube Dos Coroas. Ela se separou de mim aí eu larguei álcool nela, larguei fogo, entrei no taxi e fui para Passo Fundo.
Peguei 64 dias.
A segunda, também Maria da Penha, fiquei 54 dias por causa de uma briga em casa. A terceira, também Maria da Penha, minha mãe chamou os Brigadianos. E por desacato a autoridade, lesão corporal e resistência a prisão, peguei mais 45 dias. E a quarta foi por uma bobagem. Fiquei só dois dias. Abordaram-me na rua com química nos bolsos. Era muita loucura. Álcool, química, cocaína, balinha não. Eu sou do tempo do Algafan, que era tomado no cano. E por último o crack. Naquela época já fiquei quatro dias direto sem dormir. Uma vez era uma pedra a cada cinco minutos. Hoje em dia eu fumo de vez em quando uma para dar aquele ‘plin’. Mas o bom é a cachaça. Eu gosto, com um pouquinho de dinheiro, de comprar patê de galinha, de bacon ou mortadela, depois ir para casa tentar trabalhar.
Foi o crack que fudeu a minha vida. Em 1996, no inverno, lá em Passo Fundo, no bar da Canelinha. O Izi, que era um traficante que tinha uma chapeação para lavar o dinheiro. Naquela época eu tinha me separado e conheci a Alice no Clube dos Coroas. Foi uma paixão ardente. Fomos embora para Passo Fundo. Arrumei um emprego de marceneiro e um dos primeiros serviços foi montar umas mesas lá na chapeação do Izi. Eles ficaram sabendo que eu gostava de fumar e cheirava umas, mas aí o loco apareceu com um suporte de bronze, uma lamparina embaixo, acendia uma ponta que parecia um Kinder Ovo, tipo uma concha comprida. O loco colocou uma colher cheia de cocaína e fritou. E fez o crack na hora. Aí me disseram: “tu tem que fumar isso”. Dali em diante foi o fim. Eu ganhava R$50,00 por dia mais almoço. Ia tudo pro crack.
As pessoas falam da pedra no sapato. Essa foi a pedra no meu caminho.
“Passados esses anos que estamos juntos”, conta Alice, a companheira atual de Jura, “o que ele mais gosta é de se alimentar bem. E antes de morrer ele quer fazer um cruzeiro de navio. Com aqueles barcos grandes mesmo. Um pacote. Ele não gostaria de ir para os Estados Unidos. Para ele poderia ser para Veneza, na Itália. O que ele mais odeia são as pessoas falsas, que são uma coisa na frente e nas costas são outra.”
Hoje em dia o que eu faço é viver. Sou feliz por fora, mas por dentro tem mágoas. O que eu deixo de fazer é pro lado espiritual.
A vizinha de Jura conta: “o Jurandir, conheço há mais de 20 anos. Ele sempre foi elétrico, sempre correndo. Muitas vezes o vi almoçando em pé com o resto da família toda sentada. Ele é muito esforçado. Não pára. Com o martelo, serrote, amontoando coisas, fazendo bicos, reformando armários, pintando coisas e ajeitando outras.”.
Meu pai e minha mãe se foram. Mas peço a Deus que olhe lá de cima. Eu quero reformar esta casa. Erguer a marcenaria. Comprar o meu carrinho, pegar a nega véia, ir jantar no Gelain, comer uma pizza no Vesúvio, e ir lá no La Barra.
O La Barra, quase tudo que tem de madeira lá fui eu que montei junto com o Padilha. Ensinamos como tinha que ser a altura dos balcões, como tinha que ser o piso, o deck, as prateleiras, o caixa. Ficou bom, lá. Me orgulho.
Mas onde eu sinto mesmo que acima de tudo é o meu maior sonho é que a minha filha continue como ela está. Que ela seja uma vitória, que faça jus ao seu nome. Que ela seja um dia bem casada. Ela vai fazer 12 anos. Nasceu no dia 07 de Janeiro. A Vitória Ystycy Santos Silva é a coisa mais linda da minha vida. E tudo o que eu quero é ter serviço aqui em casa. É continuar trabalhando para me livrar de todos esses vícios e viver em paz.